Os dois garotos brancos que acompanhavam os filhos dos embaixadores no Rio não sofreram o mesmo grau de violência. A mãe de um deles acusa os PMs de racismo. “As imagens, os testemunhos e o relato das crianças são claros! Não há dúvida! A abordagem foi racial e criminosa! Há anos frequentamos o Rio e nunca presenciei nada parecido no quadradinho de Ipanema com meus filhos”, escreveu Raiana Rondhon em um post nas redes sociais.
Bem longe de Ipanema, Rafaela Matos, mulher negra e periférica, sabe o que significam, na prática, as palavras do governador, pronunciadas no mesmo dia em que foram absolvidos sumariamente os policiais civis que em 2020 dispararam mais de 60 tiros contra a casa onde seu filho, João Pedro, de 14 anos, foi morto no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.
Rafaela agora sabe mais: não apenas a abordagem da polícia, mas também “o processo penal é racista no Brasil”, como diz o defensor público Pedro Cariello que atua como assistente da acusação, representando a família de João Pedro.
Há quatro anos, Rafaela e o marido, Neilton, lutam por Justiça pelo assassinato do filho em um processo opaco desde o início: o corpo do garoto ficou desaparecido durante 17 horas, sem qualquer comunicação à família, até aparecer já no Instituto Médico Legal (IML). Testemunhas ouvidas no inquérito policial dizem que não houve perseguição policial ou troca de tiros com “traficantes”, como alegam os policiais. Por fim, uma perícia do Ministério Público constatou que a cena foi alterada depois do crime, com armas “plantadas” para forjar a presença dos “traficantes”, além de a reconstituição não coincidir com a dinâmica dos fatos relatada pelos policiais.
Mas a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine não deixou que o caso sequer chegasse ao Tribunal do Júri, que é o órgão competente para julgar os crimes contra a vida. Optou por ignorar as provas produzidas pelo Ministério Público e absolver sumariamente os réus acolhendo a absurda tese da defesa: os policiais mataram uma criança inocente dentro de casa em legítima defesa.
“Essa absolvição sumária é um fato raríssimo e, neste caso, um equívoco e vou explicar porquê. Há pelo menos duas vertentes na prova e se há pelo menos dois caminhos que podem ser seguidos, a juíza não pode abdicar, dizer que essa prova não vale, e compreender uma outra, e ela decidir. Pela soberania do júri, se tem uma versão acusatória com uma prova, se há uma versão defensiva com outra prova, quem vai decidir isso é o júri, senão ela subtrai a competência do júri”, explica Cariello.
“Ela acredita que há uma legítima defesa em policiais reagindo e atingindo uma criança dentro de casa!”, indigna-se o defensor. “Mesmo que houvesse a presença dos alegados traficantes, a criança não está nesse quadro. A juíza faz uma opção política e ideológica e exclui a prova do Ministério Público, lícita e legítima, enquanto o destinatário final da prova é o júri”, afirma. “Se houvesse uma única versão, apoiada por testemunhas e provas, aí sim ela poderia absolver sumariamente os réus”.
A Defensoria Pública e o Ministério Público do Rio de Janeiro vão recorrer ao Tribunal de Justiça para tentar reverter a surpreendente sentença da juíza que, com mais de 300 páginas, destinou apenas duas à alegada legítima defesa, como informou o defensor. “Esperamos o reconhecimento desse equívoco por parte do Tribunal local”, diz Cariello.
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